A Luz no Evangelho de São João
Por Prof. Felipe Aquino •12 de janeiro de 2012 Sem categoria
A criação da luz
Ao narrar a obra dos seis dias, o Gênesis trata de duas criações de luz, uma no primeiro, outra no quarto dia. Numa primeira leitura, fica-se perplexo diante dessa repetição e, às vezes, chega-se até a imaginar a existência de algum lapso da parte do escritor sagrado. Entretanto, São Tomás trata com sabedoria sobre o aparente equívoco dessa passagem da Escritura, e com base na opinião de Santo Agostinho, interpreta a primeira das luzes criadas como significação do universo angélico surgido da onipotente ação de Deus, na aurora de sua ação ad extra: “Portanto, a formação da natureza espiritual é significada na criação da luz, para que se entenda que se trata da luz espiritual. A formação, pois, da natureza espiritual está em ser iluminada para aderir ao Verbo de Deus”.1 A outra luz, constituída pelo sol, pela lua e pelas estrelas com a finalidade de iluminar a terra, foi adequadamente criada no quarto dia, pois “a luz mencionada no primeiro dia era espiritual, agora é feita a luz corporal”2.
O início do Evangelho de São João
Porém, não é a respeito dessas luzes que São João trata na introdução de seu Evangelho. Para nos mostrar a substância e beleza de uma outra luz, infinitamente superior, ele ultrapassa os estreitos limites do tempo e recua aos infinitos horizontes da eternidade. “Enquanto os demais Evangelistas começam pela Encarnação, São João, indo além da Concepção, da Natividade, da educação e do desenvolvimento de Jesus, fala-nos de sua eterna geração, dizendo: ‘No princípio era o Verbo'”3. Esse princípio diz respeito ao ab æterno das Pessoas da Santíssima Trindade e do próprio Deus.
São João, com plena segurança teológica, não tem receio de afirmar que “Tudo quanto foi feito, nEle era vida…” (Jo 1, 4) para a seguir fazer um elo entre essa “vida” com a “luz que brilha nas trevas” (Jo 1, 5) que essencialmente é o objeto de nossa atenção.
O Versículo 4 do Evangelho de São João
“Tudo quanto foi feito, nEle era vida”
Ainda segundo São Beda, ao afirmar São João que toda obra da Criação era vida no Verbo, antes de seu vir a ser, foi movido pela preocupação de evitar em seus leitores a idéia de mutabilidade da vontade divina, que constituiria um grave erro. Também Orígenes teve empenho em tornar explícito o versículo em questão, citando alguns dos múltiplos exemplos espalhados pelo universo criado: o sol, as sementes, a alma do artista etc., enquanto causas nas quais vivem os efeitos que produzem: “e assim examinemos os vários exemplos naturais, dos quais, como em asas de teoria física, podemos elevar-nos com os olhos da alma até os arcanos do Verbo e, na medida em que é permitido à inteligência humana conhecer como todas as coisas feitas pelo Verbo vivem e foram feitas nEle”4.
“E a vida era a luz dos homens”
A interrrelação entre vida e luz, essa reversibilidade recíproca na conceituação de São João faz crer em alguma revelação do próprio Divino Mestre ou quiçá, de Sua Santíssima Mãe recebida por ele em algum momento. É ela muito feliz e ao mesmo tempo feita em tom categórico apesar de ser suave em sua forma, nesta segunda parte do versículo 4: “e a vida era a luz dos homens”. Um bom número de comentaristas procura aprofundar seu significado, dentre eles se destaca, de maneira especial por sua clareza, Orígenes:
A vida é o mesmo que a luz. Ele é a luz dos homens, e assim Ele é a vida dos homens, dos quais é luz. E deste modo quando se diz vida, pode dizer-se o Salvador, vida, não de Si mesmo, mas de outros, dos quais é também luz. Essa vida existe no Verbo de Deus de uma maneira inseparável, e existe juntamente desde que foi feita por Ele.
Convém, pois, que a razão ou o verbo preexista na alma para purificá-la, a fim de que, uma vez limpa de seus pecados, apareça pura, e se introduza assim, e se engendre a vida naquele que se que fez susceptível do Verbo de Deus. Não se diz que o Verbo foi feito no princípio, porque não existia o princípio sem o Verbo de Deus; a vida dos homens, porém, não estava sempre no Verbo, mas essa vida dos homens foi feita, porque a vida é a luz dos homens: quando o homem não existia, também não existia a luz dos homens que depois eles haveriam de poder ver; e, portanto, diz: “O que foi feito no Verbo era vida”; e não “o que estava no Verbo era vida”. Há outra variante aceitável, a qual diz: “O que foi feito nEle é vida”. Se entendemos, pois, que a vida dos homens, que está no Verbo, é Aquele de quem São João diz: “Eu sou a vida” (Jo 14, 6), devemos confessar que não vive nenhum dos infiéis de Cristo, mas que estão mortos todos os que não vivem em Deus5.
O Verbo é a luz intelectual que ilumina a alma dos seres racionais
Evidentemente, São João não se refere nesta passagem, à vida humana natural, mas àquela que levou o Apóstolo a exclamar: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). Ouçamos a esse propósito a opinião de Teófilo:
Tinha dito que “nEle estava a vida”, para que não se acredite que o Verbo estava separado dela. Agora declara que é a vida espiritual e a luz de todos os seres racionais. Por isto acrescenta: “E a vida era a luz dos homens”. Como dizendo: “Esta luz não é sensível, mas intelectual, e ilumina a própria alma”6.
Essa é a razão pela qual são iluminados os homens e não os seres animados ou inanimados inferiores, pois é necessária a existência da alma racional a fim de penetrar-se no universo da sabedoria.
Por outro lado, nessa afirmação de que “a vida era a luz dos homens” deve-se considerar a vida em sua forma mais nobre, que é a das criaturas espirituais, capazes de conhecimento natural e sobrenatural. Para elas, viver é conhecer, pela razão na ordem natural e pela fé na ordem sobrenatural: “Esta é a vida eterna, que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro, e a teu enviado, Jesus Cristo” (Jo 17, 3).
Ao abraçarem o pecado, os homens se fecham à luz procedente do Verbo
Pelo anteriormente exposto, vemos o quanto é densa de significação essa aproximação que São João faz entre vida e luz. Por outro lado, podemos deduzir até que ponto o pólo oposto estaria colocado na morte e trevas, não no sentido de que se possa considerá-las como uma potência incriada e em luta contra Deus como desejariam os maniqueus, ou os gnósticos, por exemplo. Mas de fato inteiramente aplicáveis aos que se blindam em relação à luz, ou seja, à Palavra de Deus, e depois de se lançarem nas trevas, acabam por conferir a morte ao seu espírito.
Se a vida se torna tal só quando se reconhece chamada por Deus e só nesta compreensão – de ser “luz” – é vida, é necessário que tenha também a possibilidade de recusar tal compreensão e tornar-se “trevas”. Trevas em S. João não significa, como no gnosticismo, uma substância eterna e contrária a Deus; mas é um ato histórico, isto é, a revolta que perpassa toda a história do homem contra o apelo da palavra divina e o fechar-se do homem em si mesmo. Por isso a condição do homem fechado em si e que procura manter essa orgulhosa autossuficiência é caracterizada por João como matar a verdade e ser mentiroso (8, 30-47), buscar a glória (isto é, a luz aparente) dos homens em vez da glória (a verdadeira luz) de Deus (5,44; 7,18; 12,43)7.
Em contraste com as “trevas”, compreendemos ainda melhor a pulcritude da “luz”, como também o porquê da afirmação de Jesus: “O teu olho é a luz de teu corpo. Se o teu olho for simples, todo o teu corpo será luminoso” (Mt 6, 22). De fato, pode-se assegurar que se teu olho é simples, teu interior será luminoso. Se tua intenção é reta, teu interior estará penetrado de luz. Se teu coração é puro, verá as coisas como realmente são. Assim, ter o interior luminoso significa ver as coisas em sua verdadeira luz, apreciá-las segundo seu justo valor, de dentro do prisma da eternidade e em função de suas relações com o Verbo de Deus.
Ao se perguntar Santo André de Creta, bispo, em seu sermão de Domingo de Ramos:
“Que luz é esta?”, respondeu logo a seguir com toda clareza: “Só pode ser aquela que ilumina a todo homem que vem ao mundo (cf. Jo 1,9). A luz eterna, luz que não conhece o tempo e revelada no tempo, luz manifestada pela carne e oculta por natureza, luz que envolveu os pastores e se fez para os magos guia do caminho. Luz que desde o princípio estava no mundo, por quem foi feito o mundo e o mundo não a conheceu. Luz que veio ao que era seu, e os seus não a receberam”8.
Aí está esse Deus que “habita uma luz inacessível” (1 Tm 6, 16) na realização de Seu eterno desejo de comunicar Sua própria vida, “a luz dos homens” (Jo 1, 4). E daí se entende o porquê de os homens, quando abraçam o pecado, fecharem os olhos à luz procedente do Verbo, Vida de nossa vida, Luz de nossa inteligência. À salvação, prefere o pecador as desordenadas trevas de suas paixões, de suas más inclinações.
Aquela vida é a luz dos homens, mas os corações insensatos não podem compreendê-la, porque seus pecados não lhes permitem; e para que não suponham que essa luz não existe, pelo fato de que não podem vê-la, prossegue: “A luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam”. Por isso, irmãos, assim como o homem cego colocado diante do sol, embora estando em sua presença, se considera como ausente dele, dessa maneira todo insensato, todo iníquo, todo ímpio é cego de coração. Está diante da sabedoria, mas como um cego, seus olhos não a podem enxergar: ela não está longe dele, mas ele é quem está longe dela9.
O versículo 5 do primeiro capítulo do Evangelho de São João
A essas alturas, passamos a distinguir melhor a profundidade dos termos “luz” e “trevas”, empregados por João no versículo 5 – “E a luz resplandeceu nas trevas, mas as trevas não a compreenderam” -, sobretudo se retornarmos às considerações de Orígenes sobre a introdução do quarto evangelho, nas quais estabelece a equivalência entre os termos “luz” e “vida”; “morte” e “trevas”:
E se a vida é o mesmo que a luz dos homens, ninguém que está nas trevas tem vida, e nenhum dos que vivem está nas trevas; e como todo aquele que vive encontra-se na luz, todo aquele que está na luz vive. […] Pelo contrário, aquele que faz coisas próprias à luz, ou cujas ações brilham diante dos demais homens, e que se lembra de Deus, esse não está na morte, de acordo com o que diz o Salmo 6: “no seio da morte não há quem de Vós se lembre”10.
Antes da Encarnação o gênero humano estava nas trevas por causa do Pecado Original
A origem das “trevas” que cercam o homem, afirma Orígenes, está na sua natureza ferida pelo pecado dos primeiros pais: “porque todo o gênero humano – não pela natureza, mas por causa do pecado original – estava nas trevas da ignorância da verdade”. E pela luz de Cristo, que “resplandece nos corações daqueles que O conhecem, após ter nascido da Virgem”, o homem é resgatado da escuridão espiritual. Por isso, Orígenes é levado a exclamar com o Apóstolo: “Antes éramos trevas, mas agora somos luz no Senhor, se somos de algum modo santos e espirituais”. E lembra que se saímos das sombras do erro deve-se à Encarnação do Verbo: “A luz dos homens é Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual Se deu a conhecer pela natureza humana a toda criatura racional e intelectual, como também manifestou aos corações dos fiéis os mistérios de sua divindade”11.
Porém, uma vez recebida a luz da verdade e da vida temos de reconhecer nela uma dádiva muito superior à nossa pobre natureza. Orígenes nos coloca nessa perspectiva:
Assim como o ar não brilha por si mesmo, mas se chama trevas, assim nossa natureza, enquanto examinada por si mesma, não é mais do que certa substância tenebrosa, capaz de participar da luz da sabedoria; e assim como não se diz que o ar brilha por si mesmo quando recebe os raios do sol, mas sim que a luz do sol nele resplandece, assim também a parte de nossa natureza racional, enquanto participa da presença do Verbo de Deus, não conhece por si mesma seu Deus nem as coisas compreensíveis, mas pela luz divina que nela se encontra. E desse modo a luz brilha nas trevas porque o Verbo de Deus, vida e luz dos homens, não cessa de resplandecer em nossa natureza (a qual, considerada e estudada em si, não passa de uma obscuridade informe); e como essa mesma luz é incompreensível para toda criatura, as trevas não a compreenderam12.
As trevas nunca vencerão a Luz do Verbo
São Tomás de Aquino, em seu comentário ao prólogo do Evangelho de São João, completa o sentido desse versículo, indicando a ação dos maus como a tentativa frustrada de ofuscar a Luz:
[As trevas] não venceram [a Luz]. Já que por muito que os homens obscurecidos pelos pecados, cegos pela inveja, tenebrosos pela soberba, tenham lutado contra Cristo – censurando, fazendo injúrias e ultrajes, e finalmente matando, como está claro no Evangelho – contudo, não O compreenderam, isto é, não O venceram obscurecendo-O de modo que sua claridade não brilhasse em todo o mundo13.
Pelo anteriormente exposto, pode-se perceber o quanto é acertada a expressão de São João “et tenebræ eam non comprehenderunt” (Jo 1, 5), pois a força dessa luz é a própria onipotência divina que eleva nossa natureza aos cimos da vida da graça e dissipa o mal deste mundo. A iniquidade, o erro e o feio não conseguiram – e nem jamais o conseguirão – vencê-la.
As trevas (conjunto das forças do mal) nunca abarcarão a luz do Verbo pois, “lux in tænebris lucet”.
Ademais, é um erro fundamental querer atribuir o caráter absoluto às trevas como o fizeram na Antiguidade certas religiões, considerando, assim, a existência de dois deuses: luz e treva. E se não são as trevas um ser por essência, como podem elas vencer a luz?
A Luz veio ao mundo
No último dia da Festa dos Tabernáculos, durante uma longa discussão com os fariseus e em seguida ao episódio com a mulher adúltera apanhada em flagrante, Jesus afirma: “Eu sou a luz do mundo, o que me segue não andará nas trevas, mas terá a luz de vida” (Jo 8, 12). Um dos principais ritos dessa festa propiciou ao Divino Mestre essa afirmação, pois os judeus acendiam uma grande lâmpada no interior do Templo e realizavam uma procissão com tochas em chamas.
É ainda dentro desse contexto que encontramos outro pronunciamento de grande importância: “Se vós permanecerdes na minha palavra […] conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres” (Jo 8, 31). Porém, os próprios circunstantes ouviram mas não compreenderam, e alguns até se revoltaram.
Mais adiante, novamente Ele diria: “sou a luz do mundo” (Jo 9, 5) e desta vez conferindo maior facilidade para a crença em Sua palavra, ao curar um cego de nascença, o qual num reencontro adquire a luz da verdade, manifestando Sua fé na divindade de Jesus: “Creio, Senhor. E, prostrando-se, O adorou” (Jo 9, 38). Entretanto, apesar de todas as mais robustas comprovações, continuaram as objeções dos que recalcitravam contra a Lux Vera14.
Ia assim, realizando-se o juízo de Deus:
A condenação está nisto: A luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. Porque todo aquele que faz o mal, aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de que não sejam reprovadas as suas obras; mas aquele que procede segundo a verdade, chega-se à luz, a fim de que suas obras sejam manifestas como feitas segundo Deus (Jo 3, 19-21).
A união com a Luz impõe a íntegra coerência de fé, razão e vontade
Jesus nos trouxe a luz da verdade ao se encarnar no seio virginal de Maria Santíssima, e nos ofereceu uma revelação fundamental: Deus é luz. E é nessa luz que devemos caminhar conforme nos aconselha São João em sua primeira Epístola:
A nova que ouvimos dele e que vos anunciamos é esta: que Deus é luz e não há nele nenhuma treva. Se dissermos que temos sociedade com ele e andamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Porém, se andamos na luz, como ele também está na luz, temos comunhão recíproca, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado (1 Jo 3, 5-7).
A união com Deus – Luz e Verdade em essência – impõe a necessidade da íntegra coerência de fé, razão e vontade com as exigências de tão alta comunhão.
Com razão se pode pois dizer que João, referindo-se polemicamente à terminologia gnóstica da luz, a desenvolve, porém, na perspectiva do simbolismo vetero-testamentário – a luz é a palavra de Deus – e lhe dá um centro novo no homem histórico Jesus. Ele é a verdadeira luz (Jo 1, 8), isto é, somente nele é dada a verdadeira iluminação da vida humana. Só quem se compreende a partir de Cristo e orientado para Cristo, se compreende retamente e “vive” na verdade. O simbolismo joanino da luz deve ser visto no contexto unitário da interpretação que o quarto Evangelho dá dos grandes símbolos elementares da humanidade – pão, água, vida, luz – aplicando-os a Jesus de Nazaré. Central e típico é o caso da cura do cego de nascença, na qual se reflete claramente todo o drama da história humana; drama a que apenas se alude no prólogo com poucas e breves palavras (1, 9). Em João, a luz é a verdade que em Cristo se tornou novamente acessível ao homem; as trevas são a falsidade, isto é, a realidade do homem que, antes da vinda de Cristo, vive sempre de um ou de outro modo em oposição à verdade. A imagem da luz é assim radicalmente privada de seu significado natural e ao mesmo tempo levada à sua mais alta expressão15.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
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